Saturday, November 04, 2006

Os outros

O homem chegava ao velório para dar com os olhos, pela última vez, no Fim.

Familiares, amigos, colegas. Tinha muita gente ali pra fazer o mesmo.

No caixão, a filha atropelada. Saldo aparente da violência: hematomas, dente quebrado, metade de uma sobrancelha, olhos e boca semi-cerrados, nota de dor no rosto adolescente.

"Cuidado pra não se impressionar", diziam alguns ao sair da sala fúnebre.

O homem começou a subir a escada, apoiando-se em corrimões, namorada, moléculas de ar.

O rosto desfigurado pelo sofrimento ainda mantinha, no entanto, os traços conhecidos de todos.

Todos se reconheceram naquele homem despedaçado.

"Perder uma filha é morrer duas vezes"

"É contra as leis da natureza"

"São os filhos quem deveriam enterrar os pais"

Braços longos envolveram o homem e sua dor. Um longo e forte abraço, alguns olhares. Muitos "meus pêsames".

Os braços e pernas o entregaram a outros braços e pernas, que o entregaram para outros braços e pernas.

Quando nascemos, emprestamos pernas e braços outros, até que possamos caminhar e segurar com nossos próprios.

Quando mergulhamos na tristeza mais profunda, é como se voltássemos àqueles primeiros dias. Viramos, por momentos, os outros.

De braços e abraços, pernas e passos, sussurros e palavras, o homem chegou até a filha morta.

E emprestou, da sua menina, algumas lágrimas mais.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

bah fe..
muito lindo esse texto..me fez pensar um monte...e chorar também.
beijo

3:24 AM  
Anonymous Anonymous said...

e emprestou para familiares, amigos, colegas força para nascer de novo (com ele) ...
lindo texto! envia para ele.
beijo

3:59 AM  

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