Tuesday, February 06, 2007

"Escutas? É a chamada insistente dos atabaques"

Faz uma semana ou duas terminei de ler "O Ócio Criativo", do Domenico de Masi. Poderia listar aqui uns vinte motivos que fazem desse livro um dos meus "top ten", mas me restrigirei a somente um deles. Domenico é simplesmente um apaixonado pelo Brasil! Apaixonado como eu sou, meia cega, meia boba, dessas de chorar quando vê criança de projeto social, talvez seja pedir muito de alguém que vive em Roma. Mas, sem dúvida, o velhinho mostrou que é um amante e tanto de nossa Terra Brasilis. Que outra condição faria dele capaz de dedicar a deliciosa declaração aqui reproduzida, do que a paixão?

Completada a volta de meio mundo, onde é que desembarcamos?

No Brasil. Em Salvador, nas ruas calçadas do Pelourinho, avermelhadas pelo sangue antigo dos escravos. No Rio, na floresta encantada da Tijuca. Em Ouro Preto, nas frescuras das suas igrejas. Em São Paulo, no desespero das suas favelas. Nas praias de Angra e nas pousadas de Paraty. No plano-piloto de
Brasília, entre os honestos edifícios projetos por Niermeyer e os exóticos jardins esculpidos por Burle Marx.

Jorge Amado seria nosso guia: "Escutas? É a chamada insistente dos atabaques na noite misteriosa. Se vieres, soarão ainda mais forte, na batida potente da chamada do santo, e os deuses negros chegarão vindos das florestas da África para dançar em tua honra. Com os seus vestidos mais bonitos, dançarão suas danças inesquecíveis... Os ventos de Iemanjá serão só uma doce brisa na noite estrelada. Com ela não verás somente a casca amarela e luminosa da laranja. Verás também os gomos apodrecidos que dão nojo na boca. Porque assim é a Bahia, mistura de beleza e sofrimento, de abundância e fome, de riso alegre e lágrimas ardentes."

Em nenhum outro país do mundo a sensualidade, a oralidade, a alegria e a inclusividade conseguem conviver numa síntese tão incendescente. "Um povo mestiço, cordial, civilizado, pobre e sensível habita esta paisagem de sonho", insiste Jorge Amado.

A sensualidade é vivida pelos brasileiros como uma intensidade serena. Por "oralidade" eu entendo a capacidade de expressar os próprios sentimentos, de falar. Aquela atitude que no Japão, na China, nos países nórdicos, da Inglaterra à Suécia, é substituída pela incomunicabilidade recíproca e, nos casos extremos, pela solidão desesperada. Por inclusividade entendo a disponibilidade de acolher todos os diversos, de fazer conviver pacificamente, sincreticamente, todas as raças da Terra e todos os deuses do céu.

Todas essas coisas se tornam leves graças a uma disponibilidade perene e uma alegria natural, expressa através do corpo, da musicalidade e da dança. Oscar Niermeyer, que dedicou noventa e dois anos da sua vida à arquitetura, escreveu na parede do seu estúdio uma linda frase que, creio, diz assim: "Mais do que arquitetura, contam os amigos, a vida e este mundo injusto que
devemos resgatar".

É este o lugar: é no Brasil, neste país tão puro e tão contaminado, que eu gostaria de alimentar meu ócio criativo.

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